Amílcar Cabral

Biografia Cronológica:

1924, 12 de Setembro: Nasce em Bafatá, Guiné

1932: Vai para Cabo Verde

1943: Completa no Mindelo o curso liceal

1944: Emprega-se na Imprensa Nacional, na Praia

1945: Com uma bolsa de estudo, ingressa no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa

1950: Termina o curso e trabalha na Estação Agronómica de Santarém

1952: Regressa a Bissau, contratado para os Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné

1955: O governador impõe a sua saída da colónia; vai trabalhar para Angola; liga-se ao MPLA

1956: Criação em Bissau do PAIGC

1960: O Partido abre uma delegação em Conacri; a China apoia a formação de quadros do PAIGC

1961: Marrocos abre as portas aos membros do Partido

1963, 23 de Janeiro: Início da luta armada, ataque ao aquartelamento de Tite, no sul da Guiné; em Julho o PAIGC abre a frente norte

1970, 1 de Julho: O papa Paulo VI concede audiência a Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos

1970, 22 de Novembro: O governador da Guiné-Bissau decide e Alpoim Calvão chefia a operação "Mar Verde" destinada a capturar ou a eliminar os dirigentes do PAIGC sediados em Conacri: fracasso!

1973, 20 de Janeiro: Amílcar Cabral é assassinado em Conacri

1973, 24 de Setembro: Nas matas de Madina do Boé, o PAIGC declara, unilateralmente, a independência da Guiné-Bissau.

Homenagem a Amílcar Cabral, 2005:

Todos os anos, por esta altura, há iniciativas de homenagem a Amílcar Cabral. Hoje foi-me pedido que desse um contributo específico, que pudesse também ser um ponto de partida para um debate, uma reflexão entre todos os presentes.

Como homenagear Amílcar? Reflectir sobre o quê? Gostaria de partir de dois pontos relativamente simples: Cabral é um património e é também uma fonte de inspiração. Estas duas razões seriam já suficientes para lhe prestarmos a nossa homenagem.

Amílcar Cabral é um património valioso, e não só da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, porque lutou pela liberdade dos seus povos, mas também de todo o mundo, porque a sua visão era universal, se inscrevia numa corrente de pensamento e de acção do seu tempo e nela abriu novas perspectivas, com amplas repercussões. Um património tem de ser cuidado, porque o tempo e o uso - ou o esquecimento - tendem a degradá-lo. Cuidar de uma preciosidade imaterial, como a vida e a obra de uma pessoa é sobretudo conhecê-la, compreênde-la cada vez mais profundamente, nos seus vários matizes, nos seus vários desdobramentos, no seu contexto histórico e nas suas leituras e implicações contemporâneas. E dá-la a conhecer, partilhá-la, porque vale a pena.

Vale a apena porque podemos aprender sobre a cultura, a história, as sociedades da Guiné-Bissau, de Cabo Verde, de Portugal, de África, sobre as lutas de libertação, o colonialismo, o que moldou e marcou gerações inteiras... Vale a pena porque podemos acompanhar o processo de aprendizagem de um homem que viveu simultaneamente várias culturas, que descobriu as realidades dos povos que lhe deram origem e os desafios do mundo em conturbada mudança e conseguiu ir elaborando e comunicando as suas próprias sínteses de todos estes vectores... Vale a pena porque o seu pensamento era alimentado pela acção e era fonte de novas iniciativas, estava virado para os camponeses africanos, aparentemente desprovidos de qualquer poder e para os decisores mundiais que julgavam comandar, sozinhos, o futuro do mundo... Vale a pena porque quebramos estereótipos como, por exemplo, o de que África não criou líderes mundiais ou pensadores marcantes ou o de que os pequenos países têm como fatal destino permanecer sempre na obscuridade, ou ainda o de que propostas de há várias décadas estão, por natureza, fora de prazo...

Isto quer dizer que este património não é inerte. Ele pode ser fonte de inspiração - o que não quer dizer imitação, nem transposição mecânica para outros contextos, nem saudosismo, mas incentivo à continuação da reflexão e da intervenção.

Podemos inspirar-nos nos valores de Cabral, ou nas suas metodologias de análise, ou na sua capacidade de conceber e tornar realidade acções no quadro de um projecto de longo alcance, ou na arte de comunicar as suas ideias fundamentais a vários tipos de públicos e de convocar e congregar pessoas, grupos, comunidades, para pensar e lutar por finalidades comuns.

Hoje diríamos que ele conseguiu distinguir o essencial do acessório, conseguiu conceber uma visão estratégica que guiou o combate pela liberdade em tempos muito difíceis, identificou, formou e contribuiu para criar condições para que se formassem recursos humanos capazes de dar corpo aos objectivos tornados colectivos, deu a vida pelas causas em que acreditava. Não sem hesitações, não sem contradições, não sem erros - também estes devem ser apreendidos, são parte do mesmo património e com eles se pode aprender.

Agora vivemos igualmente num mundo e num tempo perturbados e perturbadores. Procuramos saídas para as crises e alternativas a modelos de vida e de sociedade esgotados, que aprofundam as injustiças actuais e colocam em perigo o futuro. É importante, uma vez mais, tentarmos perceber o que se passa, formularmos grandes objectivos, desenharmos todos os passos, a partir do chão que pisamos, para os conseguir alcançar e deitarmos mãos à obra. Experimentar, com outros, o que fazer. E, fundamental - como fazer. Persistir, repensando e ensaiando.

Hoje, nada se faz isoladamente. As nossas sociedades são abertas, interdependentes, peças de um puzzle gigante cujas peças estão em constante movimento, movidas por forças de dentro e de fora, do passado e do presente, de interesses muito diferentes - e quantas vezes divergentes e contraditórios - de experiências e visões diversificadas. Nada é simples. Tudo é mais e mais complexo. Guias feitos à medida deixaram de existir. Resta-nos procurar, partilhar, reforçar aqueles trilhos com os quais nos identificamos.

Neste percurso, há que diagnosticar fragilidades, necessidades, mudanças indispensáveis, às vezes urgentes. Mas isso não basta. É preciso também descobrir recursos: uns claramente disponíveis, outros escondidos, alguns embrionários ou potenciais, a reforçar. Será com os recursos que temos que poderemos criar novas soluções e construir respostas às inquietações que sentimos.

Falamos em "nós". Nós, somos todos os cidadãos. A começar pelos que estamos aqui e pelos que nos ouvem, em várias partes do mundo. Se fossemos atentos, activos, capazes de estabelecer pontes, de procurar caminhos, de reunir forças, quantas coisas novas não poderiam acontecer? A sociedade civil tem muito para dar, se se organizar para intervir a favor de um mundo mais justo e equitativo. É a esse papel que temos de dar força.

Poderia dar muitos exemplos. Mas arrisquei escolhar um único. Estamos em Portugal. Amílcar Cabral é filho da Guiné-Bissau e de Cabo Verde. Há, entre nós, um outro património pouco conhecido e reconhecido - as comunidades migrantes e as suas associações. Elas vivem simultaneamente várias culturas, fazem a ponte entre várias sociedades. Contribuem para o desenvolvimento não só do país de acolhimento, como do país de origem. Homenagear Amílcar Cabral pode também ser assim.

Luísa Teotónio Pereira
19 de Janeiro de 2005
Intervenção na sessão de Homenagem a Amílcar Cabral organizada pela Bolanha - Associação Guineense de Quadros e Estudantes e pela Associação Guineense para a Paz e Democracia.

Nos 70 anos de Amílcar Cabral, 1994:

 Pouco antes de morrer, o meu pai intelectual – Mário de Andrade – desenhou uma tarefa importante para os dois: escrever um livro sobre a actualidade do pensamento de Amílcar Cabral, vinte anos depois da sua morte. A sua saúde precária e as minhas inúmeras ocupações não permitiram que esse sonho se tornasse realidade na data de comemoração desses vinte anos, 1993.

Outra data importante, a recente celebração do septuagésimo aniversário do nascimento de Cabral nos interpela de novo. É mais forte do que nós! Cada vez que uma destas datas se afiguram no nosso raciocínio, sentimo-nos devedores de uma lembrança ou recordação. Porque Cabral representou, e continua a representar, o equilíbrio perfeito entre a cultura e a política, entre a ética e o objectivo, entre o presente e o futuro.

Só hoje me dou conta que tudo isso se deve à forma como Cabral concebia a ideologia. Para ele o mais importante era desenvolver o processo onde a participação oferecesse às pessoas o desejo de contribuir. Era didáctico com os que precisavam de didatismo, mas não directivo com os que queriam asas para voar. Concebeu a luta armada de libertação nacional como um acto de cultura, uma demonstração da capacidade organizativa de um povo.

Mas estava também consciente dos limites do seu sonho. Sabia que tinha seguidores desconfiados, e até traidores da causa. Para eles utilizava ainda mais persuasão até estes se marginalizarem por si próprios do poder. Cabral era capaz de activar pela mobilização, interesses e capacidades ocultas. O seu slogan “Unidade e Luta” conseguia reunir todos à volta de uma interpretação única do que deveria ser a unidade (dinâmica e não estática) e a luta (por um conjunto de valores mais do que contra pessoas).

É interessante como todos estes princípios constituem hoje os pilares do novo paradigma de desenvolvimento, o desenvolvimento humano sustentável. É curioso igualmente notar como os métodos de gestão política de Cabral fizeram milagres, seguindo, naquele tempo e contexto (as matas da Guiné-Bissau) a filosofia que modernas escolas de gestão ensinam hoje em dia.

Estou seguro que os graduados de Harvard não leram Cabral. A sua projecção académica pode ser considerada importante mas não tem visibilidade na “aldeia comum”. Precisamente porque de comum essa aldeia tem mais sobreposição e dominação do que diferença e identidade. A isso chama-se a tendência pragmática (a da visão dominante do mundo, evidentemente).

De facto, trata-se bem mais de ideologia, aquela mesma que Cabral articulava com a sabedoria do mestre. Para ele era importante que se desenvolvesse uma identidade e objectivos específicos ligados à realidade. Como lhe parecia que a África não o fazia, costumava repetir que o grande problema de África era a ausência de ideologia.

A teoria dos tempos livres acabou por dar razão a Cabral. Na ausência de vontade própria, articulada pelos africanos, cada vez mais estes absorvem a vontade dos outros. Mesmo que esses “outros” tenham a melhor das intenções, o resultado é o que se vê.

Como contrariar a tendência?

Uma das inúmeras iniciativas a empreender é certamente um estudo detalhado da personalidade paradigmática de Amílcar Cabral.

Quando este morreu disse-se que muitos outros Cabrais se multiplicariam para vencer o colonialismo e construir a Nação. O colonialismo foi vencido, é certo. Mas a nação, essa, continua a deambular pela floresta à procura do seu filho que incansavelmente repetia “esperar o melhor, mas preparar-se para o pior”!

Carlos Lopes
in "CIDAC: Cooperação, Informação, Desenvolvimento", nº2 (Jul, Ago, Set 94)